sábado, agosto 23

Retornados II

O nosso percurso de retorno não foi igual ao da maioria. Voltamos à "Metrópole" um pouco cedo, em abril de 1973, por força da doença da nossa mãe. O pai só veio definitivamente mais tarde, de "graciosa" na Primavera de 1975, para não mais voltar a África, deixando tudo o que tínhamos por lá. Os tempos já estavam perigosos. Eu com apenas dois anos e meio,então, era o mais novo dos três irmãos. Dois rapazes e uma rapariga. Nós, os filhos, vivemos durante esses dois anos espalhados por familiares, enquanto a nossa mãe, internada, "esperou" pela regresso do pai para melhorar. Só então agrupamos a família nuclear, no final do verão de 1975,  já em Setúbal.

Mas mesmo com estas diferenças, sempre nos sentimos e fomos tratados como "retornados". E dadas as diferentes nomenclaturas encontradas, parece-nos ser o termo mais adequado na nossa situação. 

Os nossos progenitores tinham ido para Angola em consequência da profissão escolhida pelo pai. Como militar "serviu" pela primeira vez a pátria assim que o velho senhor proferiu a necessidade de para lá ir "depressa e em força". Embarcou logo em 1961. Mas só na sua "segunda comissão", como então se designavam as temporadas de guerra, os dois foram já casados, esperando a primeira filha, que nasceu em Setembro de 1965, em Luanda.

Nada, há partida, indicava que a vida dos nossos pais viria a passar por Angola, não fosse a profissão escolhida pelo pai e a circunstância histórica do início da guerra colonial se ter desenrolado. Ambos eram de famílias nascidas, criadas e falecidas no Alentejo raiano, entre Elvas, Estremoz e Vila Viçosa.  Gente essencialmente ligada ao mundo rural, no caso da família do pai e também ao comércio, no da mãe.

A ida dos nossos pais para África e o facto de nós ainda termos nascido num velho império e o único  que se mantinha foi, por eles, sentida como natural. Sendo um acontecimento determinado pela história particularmente tardia do país, nunca tiveram essa percepção. Eram pouco ou nada politizados à época. No seu entender tinham chegado a uma terra, que apesar de longínqua, sobre todos os pontos de vista,  passou a ser a deles. 

Por isso, não é de estranhar que quem lá estava nunca tenha querido construir uma "casa de sonho" na sua aldeia...conforme refere e bem Helena Matos nos seu artigo, por comparação com os emigrantes para outra regiões da Europa e do mundo. Ninguém desejava voltar ao sitio onde não tinha sido feliz. Porque África foi, para todos estes portugueses, fossem ricos ou pobres, um Portugal melhor. Um outro país...esse sim de sonho. Os nossos lá, sentido-se portugueses, sentiam menos Portugal. O país pequenino, medíocre, fechado e sem horizontes nem esperança de mudança, de repente crescia, tornava-se afável e muito mais interessante.  Ninguém queria voltar, obviamente. 

Até o pai,  que sendo militar operacional durante seis anos na guerra- só em 1968 passou à vida civil - e conhecendo bem o preço que se pagava para se viver no paraíso, nunca pensou em voltar. Mesmo quando em 1973 a mulher e o seus três filhos vieram para a Metrópole ele manteve-se firme no seu posto, acreditando sempre que logo que esta melhorasse voltariam todos a casa. E a casa era em Angola, claro está.


Nessa altura já estávamos em Serpa Pinto, atual Menongue, capital do distrito do Cuando-Cubango, duas vezes e meia o tamanho da Metrópole, conforme me diziam os crescidos de lá, sempre que me encontravam cá, em pequeno. Nas terras do "fim do mundo", acrescentavam de seguida. Terras essas que o pai calcorreou de ponta a ponta nas suas novas funções de chefe de posto da Emissora Oficial de Angola, como se chamava a radio por lá. A instalar os postos de (re) transmissão, indispensáveis à eficaz cobertura de tão vasta região.  Fui o único dos irmãos que aí nasceu. O mano e a mana eram de Luanda, a capital da província de Angola. 

Regressado com dois anos e meio e não tendo recordações diretas, acabo por ter uma ideia viva desses tempos fruto da memória coletiva transmitida pela família e amigos. Construída especialmente durante a infância onde boa parte da comunidade de amigos eram também "retornados". Não só os dos pais mas também os meus conseguidos no sítio para onde fomos morar em Setúbal. Pois para além do bairro ser de toponímia exclusivamente colonial, o prédio onde cresci era constituído, quase em exclusivo, por gente vinda de África. Maioritariamente "brancos". Assim tivemos a sorte, pensamos, de ter crescido com uma infância quase africana no extremo do Bairro do Liceu, em Setúbal. 

Muita rua, muita brincadeira, muita abertura. Numa transição que foi (quase) pacífica podemos dizer. Apesar da nossa porteira daqueles tempos (setubalense de gema) nem sempre aceitar aquela energia tropical, dentro do prédio, com muita tranquilidade. A integração na escola foi fácil e passados os primeiros anos, pelo menos ao nível do miúdos, já nada nos diferenciava. Apenas a história recente da família e a memória que esta nos dava de um horizonte mais largo, que a maioria dos que nos circundavam não tinham. O que ainda hoje sinto, em praticamente todos, os que sei ou venho a descobrir que por lá nasceram...  

Tendo perdido tudo ou quase, no que diz respeito a bens materiais e perspetiva de vida, os retornados deram a volta às suas vidas.E estes foram o setor social (não se  pode falar em classe ou outra tipologia para além da geográfica) que efetivamente mais perdeu com a consequência mais imediata da revolução de Abril: a descolonização. Os "ricos" e os saneados do antigo regime podem ter perdido muito, mas a sua dimensão não é comparável.

Talvez por essa razão, não sei, encaro o que estamos a viver com alguma tranquilidade. Não tendo sentido o trauma que, por exemplo, tornou o pai diabético aos 36 anos, quando retornou, percebo que muita gente sinta também que o mundo desaba debaixo dos seus pés. No entanto, vimos que então como agora, o mundo não acaba, pelo menos para os que continuam vivos. E sempre novas janelas se abrem enquanto algumas portas se fecham...mas sobre isso falaremos em Retornados III... 

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